A praça que andava esquecida

Praça Raul Soares. Domingo. Pista fechada ao trânsito de veículos. No asfalto, linhas retas, figuras geométricas, cores vivas. Caminho pela pista. Uma volta, duas, três. Finalmente encontro a um canto, soltas, as palavras “desenho – muralização – resistência cultural – Kene Sagrado e proteção” e logo abaixo, as assinaturas Sadith Silvano e Ronin Koshi. Mergulho fundo no geometrismo das formas, na mística das cores. Reverencio o trabalho dos artistas: ritual sagrado da comunidade Shipibo Konibo da Amazônia peruana. Volto à tona. Numa das empenas do Edifício Paula Ferreira alguns símbolos e elementos gráficos parecem saltar de dentro do prédio. É o incrível trabalho do artista Edgard Bernardo dos Santos, mais conhecido no mundo graffiti como Ed-Mun. Obra do artista belorizontino Ed-Mun no Edifício Paula Ferreira Ambas as intervenções foram realizadas durante a 6ª edição do Circuito Urbano de Artes (CURA), cujo grande mérito, desta vez, foi trazer de volta aos holofotes a Praça Raul Soares, que andava meio esquecida. O que é lamentável. O formato circular, único numa cidade de traçado ortogonal, a simetria dos elementos que a constituem e a originalidade do piso em mosaicos marajoaras são características que por si só justificariam maior atenção de nossa parte. Mas não é só. Há outros pontos a serem destacados: o fechamento e a requalificação de alguns quarteirões adjacentes, a transformação de antigo posto de combustíveis em ponto comercial perfeitamente integrado à paisagem local e a reforma do imponente Edifício JK. Praça Raul Soares com Edifício JK ao fundo, após a reforma Portanto, argumentos não faltam para quem quer curtir o domingo num ambiente descontraído e cheio de novidades. Os outros caminhantes, corredores e ciclistas que encontrei pelo caminho que o digam. É verdade, algumas melhorias precisam ser implementadas para tornar a praça ainda mais atraente. Nada que requeira grandes investimentos. A fonte no centro da praça, por exemplo. Dizem que após a última reforma jorrava música clássica. Além de água, naturalmente. Hoje está inativa. O antigo Cine Candelária também poderia ser contemplado. O que temos hoje é apenas o esqueleto do prédio que um dia abrigou o cinema. Dizem que vão restaurar. Resgatar o passado. Tomara. E o templo da Igreja Batista? Talvez não seja uma edificação tão importante sob o ponto de vista arquitetônico, mas ficaria bem melhor se passasse por uma repaginada. Quem sabe? Tudo isso eu observei ou vislumbrei naquele domingo durante uma hora de caminhada. No final, fiz um pit stop ali pertinho, no Mercado Central. Pra não perder o costume. Fotos: Lude G.B.
Sábado na Savassi

Precisava comprar cartucho para a impressora aqui de casa. Era sábado. Onze da manhã. Mapeei as lojas de suprimentos de informática na região da Savassi e tracei o meu itinerário a partir do Colégio Arnaldo. Modo de esticar a caminhada. Subida de Ceará. Deixei para trás Timbiras e Aimorés. A primeira loja, na Getúlio Vargas, questão de minutos. Só que no meio do caminho tinha o Grande Hotel Ronaldo Fraga. Desta vez, de portas abertas. Não estava nos meus planos. Mas é aquela história: é só uma visitinha rápida… Hora do brunch. Passei pelo bar-café, pela loja de roupas e acessórios, subi a escada dos fundos. No piso superior, uma área ao ar livre destinada a eventos, vários cômodos decorados com móveis de época e um interessante acervo de livros. Grande Hotel Ronaldo Fraga – Acervo de livros do proprietário Quartos de hóspedes? Que nada. Na verdade, me informaram, este não é um hotel convencional. Aqui se hospedam parceiros comerciais. Gente que se identifica com as ideias do proprietário. Bem Ronaldo Fraga. Mas o tempo urgia. Agradeci a visita e segui adiante. Na loja da Getúlio Vargas, produto em falta. De certa forma, gostei. Se tivesse encontrado o cartucho logo de cara, o que seria da minha caminhada? Na Casa Bonomi, fila de espera. Sob o caramanchão da Cláudio Manoel, clientes experimentando deliciosos pães artesanais. Deu água na boca. Atravessei Getúlio Vargas. Do outro lado, o Bar da Dalva começava a se movimentar. Passei. Passei também pela Serenata, na esquina de Santa Rita Durão, uma das mais antigas lojas de instrumentos musicais de BH. Subi Professor Morais. Lá no alto, onde a rua afunila e muda de nome, a segunda loja. Anotei o preço, mas não levei. Eu queria mesmo é bater perna. Rio Grande do Norte, Antônio de Albuquerque, quarteirão fechado. Comida baiana, bares, cafés. Mesas na calçada. E dá-lhe caminhada. Praça da Savassi, Getúlio Vargas. Em frente a um estabelecimento que cabe num estreito corredor, pessoas conversando animadamente: The Coffee. Hora dessas volto lá pra conferir. Próximo à cafeteria, a terceira loja. Mesmo preço da segunda. A vendedora, sem perguntar se eu ia levar, foi direto ao caixa. De pirraça, não levei. Segui até Fernandes Tourinho, virei à esquerda. Livraria Quixote. Uma das minhas favoritas. Pausa para conferir os títulos nas estantes. E para um cafezinho. Reta final. Descida de Pernambuco, destino avenida Brasil. Na esquina de Inconfidentes, casa antiga abandonada. Passei. Na esquina de Cláudio Manoel, casarão antigo com varanda lateral. Preciosidade. Casarão antigo à rua Pernambuco esquina de Cláudio Manoel Quase meio-dia. Cheguei à avenida Brasil resfolegando. Quarta loja prestes a fechar as portas, nem perguntei o preço. Cartucho na mão, pé no caminho. Praça Tiradentes. À esquerda do alferes, uma bela casa de meados do século passado. À direita, outra. Uma, belos jardins, fachadas em pó de pedra, tons de ocre e areia. A outra, tijolos aparentes, escadaria em mármore, sede da Bolsa de Valores de Minas. Logo adiante, ainda na avenida Brasil, duas casas, também de meados do século passado. Gêmeas. Até na disposição da numeração, inclinada a 45 graus: 1305 e 1297. No quarteirão seguinte, a um passo do Colégio Arnaldo, outra casa, mais antiga ainda. Talvez da década de 20. Também com varanda lateral. E acreditem, quintal. O cartucho funcionou perfeitamente.
A vizinhança de Bernardo Monteiro

Quinta-feira, feriado de Corpus Christi. Pensei comigo mesmo vou caminhar num local tranquilo, sem aglomeração. E me mandei para a avenida Bernardo Monteiro. Mas não gostei do que vi. Sabe aquela agitação das manhãs de sábado? Era tal e qual. Meio perdido, sem entender o porquê daquele inusitado movimento em pleno feriado, fiquei zanzando por lá, cogitando. Acabei caindo de paraquedas, Deus sabe como, na esquina de Ceará com Gonçalves Dias. Eu havia encontrado o meu lugar. Sem pressa, curtindo o friozinho de junho sob o sol da manhã, me deixei levar Ceará abaixo. Em frente ao 1323, a primeira parada. Casa antiga. Três janelas em arco e alpendre lateral. Merece um trato. Ao lado, no 1305, um digno representante da arquitetura modernista. Pano da fachada principal em azulejos artísticos e cores vivas nas demais fachadas: Edifício Le Corbusier. No quarteirão abaixo, a bela casa onde Ronaldo Fraga instalou o seu Grande Hotel é atração à parte. Lembrei-me do fim de tarde em que lá estivemos eu e Lude, cerca de dois anos atrás. Café num dos ambientes internos. Memorável. Grande Hotel Ronaldo Fraga à rua Ceará 1205 Só depois da sessão de fotos é que percebi, na calçada, uma árvore diferente, estilizada. Em aço. Ao lado, a informação “releitura da intervenção urbana do artista americano Robert Irwin”. Pesquisei na web. Robert Irwin “explora a relação da percepção na arte por meio de ambientes imersivos em instalações que alteram a experiência física, sensorial e temporal”. Complicado, né? Mas tem jeito de decifrar. É só dar um pulo no Inhotim, onde o artista expõe um de seus trabalhos. Mas retomemos a nossa caminhada. Nas ruas Piauí e Maranhão, dois bons exemplos de preservação do patrimônio histórico ao jeitinho brasileiro: permite-se a construção de novas edificações em terrenos onde existam imóveis de valor histórico, desde que os mesmos sejam preservados. Menos mal. Na rua Piauí, foi o caso de uma sequência de casas antigas. Quatro de uma só vez. Devidamente restauradas durante a construção dos edifícios Vintage Design Residence e Retrô Design Residence. Gostei mais da que leva o número 1052. Entrada do Edifício Vintage Design Residence à rua Piauí 1052 Já na rua Maranhão, a moeda de troca foi uma belíssima casa dos primórdios da capital (foto de abertura). Preciosidade. Imagino que tenha sido construída por volta de 1910. Ponto para os construtores do Edifício Karina Barakat, que capricharam na restauração. Mas o tempo urgia. Eu havia percorrido apenas parte do trajeto planejado. Ainda faltavam as ruas Timbiras, Aimorés e Bernardo Guimarães. Foi aí que me lembrei de comentário do amigo Carlos Perktold sobre casa antiga na rua Aimorés. Fui lá pra conferir. A casa leva o número 500 e está situada ao lado de um posto de combustíveis. Segundo Perktold – o comentário é de setembro de 2019 – “o imóvel está abandonado pelo dono, provavelmente porque foi tombado e se for restaurado vai surpreender a todos, tamanha é sua beleza”. De fato, a casa é uma beleza. A boa notícia é que foi restaurada e está novinha em folha. Casa antiga à rua Aimorés 500 Gostei da experiência. Não fosse a agitação da avenida Bernardo Monteiro, eu não teria feito uma caminhada tão interessante. Pena que Timbiras e Bernardo Guimarães tenham ficado para outra ocasião. Paciência, nem tudo é perfeito.
Passeio na Afonso Pena

Manhã de domingo. No asfalto, poucos automóveis. Pouquíssimos. Na calçada, quase ninguém. Livre da Feira de Artesanato, a avenida respira. Inicio a minha caminhada em frente ao Palácio das Artes. Lá dentro, somente o segurança. Aqui fora a atração é a dança do vento encenada pelas palmeiras imperiais. O problema é que a performance acontece a trinta metros de altura. E o vento lá no alto não está de brincadeira. Mas o meu santo é forte. Deixo para trás o último exemplar da imperial espécie e sigo em direção à rua da Bahia. Vou admirando, desta vez do lado de fora, a beleza do Parque Municipal. Passo pela portaria defronte a avenida Álvares Cabral e mais adiante me deparo com o inconfundível telhado vermelho do Chico Nunes. Nosso velho e memorável Teatro Francisco Nunes. Na esquina de Bahia faço uma pausa diante do antigo abrigo de bondes. Observo a construção: entrada e saída únicas. Final de linha, com certeza. Local onde o motorneiro girava o encosto dos bancos dos passageiros e mudava ele próprio de posição para encetar a viagem de volta. Penso com meus botões é aqui que deveria estar o bonde que se encontra no Museu Histórico Abílio Barreto. Nem que tivessem que protegê-lo com uma redoma de vidro. E já imaginando o sucesso que faria o meu bonde no abrigo original, atravesso a pista e alcanço o canteiro central da avenida. Caminho de volta. Observo as construções à minha direita. O sobrado remanescente das primeiras décadas do século passado, o prédio do antigo Museu do Telefone, o prédio da Prefeitura. O prédio da Prefeitura? Um dos ícones da avenida. Mas o que chama a minha atenção é um detalhe da fachada: três atlantes – figuras antropomórficas esculpidas sob falsas colunas – que eu nunca havia observado com a devida atenção. E confesso, nem sabia que têm esse nome. Mais um aprendizado. Não foram poucos desde que passei a caminhar pelas ruas da minha cidade considerando-a tão interessante quanto qualquer outro destino turístico mundo afora. Prova disso são o prédio do Automóvel Clube e o Palácio da Justiça, que agora desfilam diante de mim com sua imponência e riqueza de detalhes. É de encher os olhos de qualquer turista. Quanta história pra contar. Principalmente o Automóvel Clube, que há exatamente 90 anos, no dia 4 de abril de 1931, recepcionou ninguém menos que os irmãos Eduardo, Príncipe de Gales, e Albert, futuro rei George VI da Inglaterra. Nobreza britânica em BH. E por falar em nobreza, acabei de descobrir agora: chique mesmo é morar no 1456 da avenida. Edifício São José. O único prédio residencial desde Bahia até Guajajaras. Imagina o privilégio do morador que acorda pela manhã, abre as janelas e recebe uma lufada de ar vinda do Parque Municipal. Mas vamos deixar em paz o morador do São José, que neste momento me observa lá do alto, e fechar a primeira volta. Estou diante do antigo Conservatório Mineiro de Música, hoje Conservatório de Música da UFMG. Para mim, um dos prédios históricos mais bonitos e bem conservados de BH. Até aqui foram 10 minutos, ida e volta. Faltam 40 para o fim da jornada. Começo tudo de novo: Palácio das Artes, Teatro Francisco Nunes, abrigo de bondes… A diferença é que agora entram em cena a câmera e o bloco de notas do celular. O resultado é o artigo que você acaba de ler.
Os segredos da Sapucaí

Seis e meia da manhã. Rua Sapucaí, próximo ao viaduto da Floresta. Sigo rente à balaustrada, direção Assis Chateaubriand. De tempos em tempos escuto, abafado pela fileira de árvores que encobre a linha de trem lá embaixo, o ranger do metrô deslizando sobre os trilhos da ferrovia. Um pouco acima, mas ainda em nível inferior ao da rua oficial, outra rua se revela: calçamento tipo pé-de-moleque, tufos de mato aflorando nas gretas e nas sarjetas, orvalho da última chuva evaporando lentamente. Procuro um acesso. Acesso não há. Vou caminhando sem tirar os olhos da Sapucaí de Baixo. De repente, uma pequena edificação. Na fachada, a logomarca do Museu de Artes e Ofícios, um “a” maiúsculo em forma de compasso girando sobre a letra “o”. Mais alguns passos e descubro, semiocultas entre galhos de árvores que avançam sobre a calçada, algumas peças do MAO. Trata-se do “Jardim das Energias”: rodas d’água, moinhos, engrenagens… Logo adiante, após o prédio da antiga Rede Mineira de Viação, uma grande janela se abre para a cidade. Um belo horizonte se descortina diante dos meus olhos. Embarco num tour visual desde a Praça da Estação até o 1500 da Afonso Pena. Identifico os edifícios Itatiaia e Aurélio Lobo, as empenas multicoloridas dos prédios vizinhos, o lado bê do Acaiaca, a herança deixada pelo Othon Palace, o fundo verde do Parque Municipal, os arcos do viaduto Santa Tereza. Desço até a esquina de Assis Chateaubriand. E volto. Abandonado e cheio de pichações, o edifício Chagas Dória, digno representante do estilo art déco dos anos 30, pede socorro. Quem sabe algum mandatário da Cultura erra por essas páginas e se sensibiliza? Absorto em meus pensamentos, passo pela rua Tabaiares (corruptela de Tabajaras, a tribo indígena?) e sigo em frente. Na esquina de Tapuias (este sim, legítimo topônimo indígena), o imponente prédio da extinta Rede Ferroviária Federal recende beleza por todos os lados. Totalmente restaurado, está pronto para receber o futuro “Centro Cultural da Memória Ferroviária”. Já chegando ao final da primeira volta, quase esquina de Silva Jardim, o sobrado do 127, também restaurado. Uma preciosidade. Sede do Instituto Cultural Flávio Gutierrez. E segue a caminhada. À medida que o dia vai amadurecendo, novos personagens vão aderindo: a dama do cachorrinho, o cavalheiro que faz a volta do Parque Municipal, a garotinha de 9 meses feliz da vida no carrinho conduzido pela avó. Mas nem só de andarilhos vive a Sapucaí. Há também os que a procuram para outras atividades como pedalar, correr e até mesmo empinar papagaio. Isso mesmo. Tem um menino de cabelos grisalhos que costuma empinar papagaio por lá. Diz que o céu é uma pintura. Inspira. É verdade!
Domingo na Bernardo Monteiro

Era domingo. Uma bela manhã de domingo. No painel de instrumentos, implacável, o relógio exibia o adiantado da hora: dez e meia. Havíamos saído de casa, na Floresta, com o intuito de caminhar na Praça da Liberdade. Naquele horário, para quem foge de aglomeração, uma péssima escolha, não é mesmo? Mas quem sabe… Se tivéssemos sorte, bem. Se não, amém. Buscaríamos outra freguesia. Não foi necessário. Em frente ao Colégio Arnaldo, rendendo-se à magia da paisagem, o motorista voltou-se para a esposa e disse aqui é um bom lugar, você não acha? Ela achou. O lado direito da avenida Bernardo Monteiro entre Brasil e Afonso Pena, via de trânsito local, era só tranquilidade. Caminhamos junto à pista de bicicletas, na faixa destinada a estacionamento de veículos. Que estava praticamente vazia. De uma ponta a outra, 500 metros. Arborizados. Fomos e voltamos ao ponto de partida não sei quantas vezes. Não me preocupei com o desempenho. Fiz questão de mostrar à Lude, que ainda não havia caminhado por lá, os atrativos do lugar. O Colégio Arnaldo dispensa falatório. Restaurado há cinco anos, é um dos prédios históricos mais bonitos de Belo Horizonte. Mesmo entrevisto à sombra das árvores do canteiro central da avenida. Nas esquinas de Timbiras e Aimorés, sobrados típicos das primeiras décadas do século passado. O da esquina de Timbiras, mal conservado. O outro, felizmente, em bom estado de conservação. Testemunhos de época. Parede e meia com o sobrado da esquina de Aimorés, uma pequena taberna portuguesa especializada em “culinária de memórias”. Aguçou o nosso paladar. Visitaremos. Assim que os bons tempos voltarem. Na esquina de Bernardo Guimarães o destaque fica por conta do alargamento da calçada, que proporcionou a instalação de algumas jardineiras e do bem montado parklet que pode ser visto em frente a um restaurante italiano. Os sessentões que nem eu vão se lembrar. Onde encontra-se o restaurante, funcionou, na década de 70, um bar que celebrava o encontro da rua com a avenida de mesmo nome: Bernardinho-Bernardão. Criativo! Finalmente, já quase na esquina de Afonso Pena, um contador de bicicletas. Isso mesmo. Um painel eletrônico que registra, em tempo real, quantas magrelas circulam pelo local diariamente. Bom pra ciclista. Que além de pista exclusiva ainda conta com este luxo adicional. Quem sabe algum dia os caminhantes também farão jus a uma pista exclusiva por lá? E nem precisa de contador eletrônico. Contentamo-nos com uma faixa sinalizada. Pra chamar de nossa.
A pracinha da Floresta

Sábado, 12 de dezembro. Sete da manhã. A praça Comendador Negrão de Lima estava praticamente deserta. Era tudo o que eu queria. Caminhar livremente, sem atropelar (e sem atrapalhar) ninguém. Mais conhecida como pracinha da Floresta, a praça Comendador Negrão de Lima justifica a alcunha. Tem apenas 80 de comprimento por 40 de largura. Caminhar por lá durante quase uma hora, como faço habitualmente, não é brincadeira. Por mais disciplinado que seja o cidadão. Entretanto, é uma das poucas áreas de lazer disponíveis aqui perto de casa, a melhor que tá tendo. Já me acostumei. Aprendi a conviver com a limitação de espaço. O que me incomoda, em determinados horários, é o excessivo número de frequentadores que o disputa. Por isso é que acordei tão cedo naquele sábado. E comprovei que o velho ditado Deus ajuda quem cedo madruga não falha. As normalmente agitadas ruas da vizinhança também estavam praticamente vazias e pude realizar antigo desejo: sair da zona de conforto e alargar os horizontes da minha caminhada. Aí foi o melhor dos mundos. Tirei a camisa para aproveitar o belo dia de sol e mandei ver: Santa Maria, Jacuí, Buarque de Macedo, Salinas, Dona Maria Inês. Ao invés dos 240 metros habituais, passei a contabilizar 600 em cada volta. Um ganho e tanto! Tamanha era a calmaria que cheguei a subir Jacuí passeando pelo meio da rua. Imagina só… E mais. Pude apreciar, com calma, os detalhes do caminho: o bem conservado casario da rua Santa Maria, o curioso jardinzinho espremido entre o muro e o 364 da Jacuí, o multicolorido das buganvílias esparramadas sobre a calçada da Buarque de Macedo. O casario da rua Santa Maria Não contei o número de voltas. Fiquei tão absorto que nem vi passar o tempo regulamentar. A última volta, desacelerando aos poucos, foi lá na pracinha mesmo. Que tem também os seus atrativos: casa em estilo mourisco, casa tipo chalé suíço, árvore de todo porte, caramanchão. Que nem cidade do interior. Só depois que cheguei em casa é que me lembrei. Naquele sábado, 12 de dezembro, Belo Horizonte comemorava seus 123 anos. E eu, mais um achado…
De São Gonçalo ao Santo Agostinho

Primeiro domingo após a viagem a São Gonçalo do Rio das Pedras. Acordei disposto a encerrar de vez o meu jejum de caminhadas de rua em Belo Horizonte. Olhei para o céu e vi que a sorte estava ao meu lado. Sol de primavera, poucas nuvens pra contar a história. Mas havia um porém: onde encontrar num dia assim, em tempos de relaxamento da população diante da pandemia, um local seguro para caminhar? Foi aí que me lembrei da região da Filarmônica, no Santo Agostinho, e falei comigo mesmo eureca, é pra lá que eu vou. Cheguei rapidinho. E levei um susto. A área externa ao prédio da Orquestra estava repleta de gente. Crianças, principalmente. E pais corujas, naturalmente. Também, não é pra menos. O conjunto de prédios onde funcionam as sedes da Filarmônica e da Rádio Inconfidência e Rede Minas de Televisão parece coisa do outro mundo. Literalmente… Ao nível da rua Tenente Brito Melo, além da belíssima arquitetura, há espaço de sobra para o banho de sol das crianças e porque não, dos papais corujas também. Do lado de baixo, o da rua Uberaba, o destaque fica por conta dos amplos jardins e do casarão histórico devidamente restaurado, onde funciona o bar-café que atende ao público visitante. Em suma, um espetáculo. Como as apresentações da Filarmônica. Mas o meu negócio era outro. Ainda bem que a pista de caminhada, que fica do outro lado da Tenente Brito Melo, estava livre. Ou praticamente. Meia dúzia de gatos pingados batiam perna por lá. Pista de caminhada é modo de dizer. Mas, para mim, é como se fosse. Estou falando do quarteirão formado por Tenente Brito Melo, Gonçalves Dias, Juiz de Fora e Alvarenga Peixoto: ruas planas e arborizadas, calçadas largas, trânsito de veículos quase nenhum. Foram dez voltas. Cinco no sentido horário, cinco no sentido contrário. Quatro quilômetros e meio em cinquenta minutos. Para quem ficou meses dando voltas numa quadra de futsal, nada mal. E ainda viajei no tempo. Voltei aos idos de 1973, quando prestei o serviço militar no CPOR – Centro Preparatório de Oficiais da Reserva, que funcionava no quarteirão vizinho, onde se encontra hoje a 4ª Companhia de Polícia do Exército. Eu cursava engenharia na UFMG pela manhã e cumpria com as minhas obrigações militares à tarde, quando não à noite, amargando intermináveis plantões no Serviço da Guarda. Ora na guarita da rua Gonçalves Dias, ora na guarita da rua Juiz de Fora. Estávamos em plena ditadura e um ataque contra nossas posições não era de todo improvável. Mas na guarita o tempo não passava. Ninguém passava. Ataque mesmo só o do sono, o inimigo número um do vigia-estudante. Eram duas horas numa guarita, quatro no sofá da antessala, duas na outra guarita e assim por diante até o final da jornada. Eu e os colegas de plantão revezávamos. E rezávamos para não ter que utilizar os velhos mosquetões com que defendíamos a nossa gloriosa corporação. Tempos aqueles… Voltei pra casa reconciliado com as ruas de Belo Horizonte. E comigo mesmo! Foto de abertura: Jomar Brangança Abaixo, fotomontagem de Frieda Kiefer gentilmente cedida ao blog.
Sob as bênçãos de São Gonçalo

Após um jejum de cento e oitenta e poucos dias por conta da pandemia, finalmente voltei às minhas caminhadas de rua. O local escolhido não foi a Praça da Liberdade, o Parque Municipal, a Andradas ou a José Cândido. A bem da verdade, não foi nenhum parque, praça ou rua de Belo Horizonte. O local escolhido foi São Gonçalo do Rio das Pedras, terra natal do meu pai. Encravado na Serra do Espinhaço, Alto Jequitinhonha, o vilarejo data do século XVIII e faz parte da Estrada Real. Fica entre Diamantina e Serro. Chegamos, eu e Lude, às duas da tarde de um domingo quente e seco. Fomos direto para a casa da família no Largo Félix Antônio, um dos cartões postais de São Gonçalo. Abrimos as janelas e ficamos um bom tempo admirando a paisagem. Largo Felix Antônio em São Gonçalo do Rio das Pedras Por fim, o calor e o cansaço da viagem nos venceram. Naquele momento, uma boa cama era tudo o que queríamos. Acordamos às cinco da tarde. Sentamo-nos num tosco banco – galho de árvore apoiado em tocos de madeira – instalado ali mesmo, no Largo Félix Antônio, e nos pusemos a contemplar, lá no alto, a Igreja Matriz. Majestosa em sua simplicidade, a igreja encontra-se bem conservada. Concluída, provavelmente, em meados do século XVIII – a pintura da capela-mor o foi em 1787 – e tombada em 1980, é uma atração à parte. Ao lado e um pouco abaixo, a casa onde meu pai nasceu. Dizem que meu avô ali se estabeleceu para melhor se desincumbir das lides de sacristão, e não satisfeito mandou fazer um portão no muro lateral, modo de encurtar ainda mais o trajeto até a igreja. Fiquei imaginando a infância saudável que meu pai viveu naquele paraíso e acabei me lembrando do motivo da nossa viagem. Já era tempo de iniciarmos a caminhada. Seguimos em direção à parte baixa. A descida exige destreza e atenção. O calçamento das ruas em pedras grandes e irregulares – dizem que da época dos escravos – não ajuda. Qualquer descuido é tiro e queda. Literalmente. Mas vale a pena. Lá embaixo, a ponte sobre o Rio das Pedras é parada obrigatória. Ver correr o rio de águas cristalinas bem no meio do vilarejo é algo indescritível. Depois da ponte, dois caminhos. Um sem saída, o outro sem fim. O primeiro conduz ao topo da Cachoeira do Comércio, uma das várias cachoeiras de São Gonçalo. O segundo a Milho Verde, Serro e aos confins de Minas. Optamos pelo primeiro. Chegamos ao topo da cachoeira em boa hora. Por do sol visto do topo da Cachoeira do Comércio Para o dia da chegada já estava de bom tamanho. Entretanto, era festa de Nossa Senhora do Rosário. Terminado o ofício religioso, saiu a procissão. Em tempos de pandemia, motorizada. Os 17 carros de São Gonçalo acompanharam. Passou a procissão, seguimos adiante. Caminho do Serro, Estrada Real. A sede de caminhar era tanta que teríamos chegado a Milho Verde, logo adiante, não fosse o cair da noite. Nos cinco dias restantes, a vida que pedimos a Deus. Café da manhã a partir das nove horas, boa música e bons livros até a hora da cervejinha, almoço por encomenda, cochilo da tarde e caminhada vespertina. Às vezes aparecia na varanda um visitante ilustre. Voltei ontem às minhas caminhadas de rua em Belo Horizonte. Não sei de onde me veio a inspiração…
Os (des)caminhos do Colégio Estadual da Serra

1965. Primeiro ano de ginásio. Colégio Estadual da Serra. Na primeira semana de aula segui direitinho o caminho que haviam traçado pra mim: Serranos, Caraça, Oriente, Muzambinho, Ouro, Ivaí. Da segunda semana em diante, nem tanto. Logo de cara eliminei o trecho Caraça-Oriente e passei a utilizar a variante Serranos-Trifana. Cortei um bom caminho, embora tivesse que enfrentar diariamente um pequeno desafio, a travessia do córrego da rua Serranos. Córrego da Serra. Diziam que o córrego era rasinho, que bastava pular sobre as pedras do fundo, essas coisas. Mas eu havia observado que os outros meninos da rua nem aí para as pedras. Equilibravam-se sobre uma tubulação de água e zás do outro lado. Fui… Apesar do feito notável para um pirralho recém-saído de infância em apartamento, eu ainda não estava satisfeito. Um novo desafio se impunha: atravessar uma pequena vila situada nas proximidades do colégio, evitando a subida de Muzambinho e o trecho final Ouro-Ivaí. Como tivesse medo de fazê-lo sozinho, aproximei-me de colega que também subia Muzambinho e propus que enfrentássemos juntos o desafio. Durante alguns dias analisamos os prós e contras, os riscos, as dificuldades. Por fim, decidimos pela aventura. Foi tenso, mas valeu a pena: saímos no alto da rua Ivaí, quase na entrada do colégio. A partir daí fomos tomando conta do pedaço. Sentíamo-nos cada vez mais confiantes. Um belo dia, porém, aconteceu um fato inusitado. Seguíamos tão distraídos que nos esquecemos de olhar para o chão e acabamos pisando naquilo que ninguém quer pisar. Ato contínuo, o colega foi logo soltando um putaquepariu e em seguida, percebendo que à porta de um barraco um pirralho zombava da nossa desgraça, gritou ôôôôô gambá… Pra quê. O danado sacou do bolso um bodoque, pegou o primeiro calhau que viu pela frente e apontando a arma em nossa direção foi dizendo vocês vão ver quem é o gambá aqui. Estamos correndo até hoje… Brincadeira. Mas o fato é que fui obrigado a buscar um novo trajeto, ainda mais longo que o inicial. Subir até o final a rua do Ouro, passar por dentro de um lote vago que havia em frente ao convento dos Dominicanos e caminhar ainda um bom pedaço até chegar ao colégio. A volta pra casa também ficou prejudicada. Passei a descer Ouro e subir Caraça. Uma volta do cão, uma subida dos diabos. Para compensar, permiti-me algumas extravagâncias. Ora um grapette no bar dos Manetta (Ouro com Trifana), ora um chicabon no armazém dos Salum (Ouro com Caraça). Criança tem dessas coisas.