Alguns dias após a mudança eu já conhecia toda a turminha da rua Serranos. Um monte de pirralhos cujo lema era um só: não ficar em casa.

Com essa turminha joguei futebol, queimada, bente altas. Brinquei de polícia e ladrão, pique esconde, ‘roba’ bandeira. Fiz guerras de mamona, participei de corridas de carrinhos de rolimã, soltei papagaio.   

Mas para mim não havia nada mais fascinante do que as expedições que fazíamos à Serra do Curral. Nestas ocasiões eu acordava cedo e ficava de plantão na porta de casa até que algum outro participante desse as caras. O papo era sempre o mesmo: nem dormi direito essa noite e você?

À medida que o resto da turma ia chegando o papo ficava mais animado, o alvoroço ainda maior. E logo o grupo estava formado: uma penca de pré-adolescentes ávidos por aventura. Mas cadê o guia?

E lá vinha ele, o pai de dois meninos e uma menina do grupo. Gente finíssima, tanto no trato conosco, quanto no aspecto físico. Hora de inspecionar matulas, provisões de água, calçados e de um sem número de recomendações que só faziam aumentar a nossa ansiedade.

Terminada a inspeção, era o estouro da boiada. Cada um por si e Deus por todos subíamos Caraça, passávamos em frente ao portão da mineradora Ferrobel e seguíamos até o final da rua. Estávamos no Morro.

Cruzávamos os barracos dando bom dia aos moradores, muitos dos quais já conhecíamos de vista, e logo chegávamos ao pé da Serra.

A subida se fazia não sem esforço. Sol na moleira, terra vermelha, seixos de minério espalhados pelo caminho. Adaptando Drummond, diríamos noventa por cento de ferro ‘nos calçados’, oitenta por cento de ferro nas almas.

Chegávamos lá no alto exaustos e famintos. Arriávamos. Legitimados pela premência da situação, atacávamos sem cerimônia as nossas matulas. Saciada a fome, cada pirralho procurava um canto para o merecido descanso e, não raras vezes, um breve cochilo.

Alguns pirralhos, entretanto, porque não tivessem sono ou o que fazer, aproveitavam o momento para atazanar a vida dos colegas.

Certa vez, um desses espécimes aproximou-se de mim e perguntou se eu tinha medo de bicho grande. Diante da minha óbvia aquiescência, foi logo dizendo pois tome cuidado, uma onça apareceu por essas bandas outro dia mesmo. Fiquei tenso.

Desnecessariamente, talvez. Por outro lado, em outras ocasiões houve tensão de fato. Coletiva.

Foi o caso de um dos nossos amiguinhos que resolveu demonstrar seus pendores acrobáticos e se deu mal. Estávamos reunidos na hora do lanche à beira de um córrego. De repente ouvimos o famoso grito Tarzaaaaaan! e logo em seguida um baque…  

Tarzan resolvera atravessar o córrego pendurado num galho de cipó, mas se esquecera de que os corpos se movem no espaço. O fato é que nosso guia, talvez buscando melhor ângulo para uma foto, se postou exatamente no ponto de aterrissagem do Homem das Selvas e foi atingido em cheio.

Rebuliço geral. O transe durou alguns segundos. O tempo necessário para que a vítima se refizesse do susto e dissesse não se preocupem, estou bem. Alívio geral. Principalmente para o autor da façanha, que já não sabia onde enfiar a cara.

Outra situação dramática aconteceu certo dia em que estávamos nos preparando para voltar e o tempo, que até então estivera perfeito, mudara sem prévio aviso. Com receio de um temporal (e raios), saímos em debandada. Daí a pouco estávamos completamente perdidos.

Só me lembro de que após várias tentativas frustradas de encontrar o caminho de volta, acabamos descendo aos trancos e barrancos pelas escarpadas encostas da Serra, rezando para não despencar lá de cima.

Choveu nada. O que sei é que cheguei em casa com pó de minério até a alma.

Drummond tinha razão…

Imagem de abertura: PBH / Reprodução

63 respostas

  1. Como sempre adorei vez mais seu escrito. Essa coisa genuína de meninos crescendo e de meninos crescidos que tantas vezes buscamos: não apenas sermos mas sermos os tais!
    Adorei de ver e ler

    1. Que legal o seu comentário, José Roberto.
      Reflete bem o que éramos naquela época: uns cabecinhas de vento. Nos achávamos…
      Forte abraço!!

  2. José Walker, eu também fiz uma viagem no tempo, bons tempos. Parabéns, você escreve lindamente.

    1. Obrigado pelas palavras de incentivo e por sua companhia, Silvânia.
      Continuemos juntos nessa viagem.
      Grande abraço!

  3. Acompanho todos, Zé! Sempre que posso venho ler suas histórias de caminhada.

    Mas essa foi como estar lá vendo tudo acontecer! Sensacional! Já pode lançar um livro de crônicas caminhantes, né? Já sou fã nº 1!

    E sim, essa subidinha é terrível, das caminhadas que já fiz aos arredores de BH, essa foi a que mais custei! kkkkkkk

    Abraços, Aurea

    1. Olá Aurea.
      Que bom que você vem ler minhas histórias de caminhada aqui no blog.
      Melhor ainda é saber que “essa foi como estar lá vendo tudo acontecer”.
      Obrigado pela companhia.
      Abração!

  4. Oi, Zé Walker!

    Amei seu texto e me diverti com suas travessuras. Muito gostoso de ler seu texto.
    Fiz três vezes a caminhada até Nova Lima no início dos anos 70. Nossa turma saiu de ônibus do Prado até o pé da serra e entramos na comunidade. Havia uns trinta barracos lá. O dia inteiro a pé embreando mato a dentro e nos orientando p Torres de transmissão até NLima. Voltamos de “ bus” p Belô super cansados e felizes.
    Foram passeios memoráveis.
    Solta mais textos saborosos p curtirmos!

    Abçs da prima
    Vanessa

    1. Valeu prima!
      Obrigado pelas palavras de incentivo.
      Que bom que você se lembrou de suas aventuras na Serra do Curral ao ler o texto. Muito gratificante saber disso.
      Abraços!

  5. Adorei conhecer essa história de aventura, Zé! Parabéns por contá-la com tantos detalhes! Dessa forma é como se eu estivesse lá, participando junto com você! Emocionante!!!
    Um abraço de sua irmã Luciana

    1. Pena que você nem tinha nascido nessa época, né? Foram experiências inesquecíveis.
      Mas fico satisfeito em saber que você ‘participou’ junto comigo ao ler o relato.
      Abração!

  6. Muito legal Walker!!
    Antigamente, estas coisas eram consideradas simples!
    E como nos divertiamos!!
    Me lembro de sair do Sion, passar ao largo do Palácio das Mangabeiras, e subir o Morro!!
    Saudades!!!

    1. Prazer em te ver por aqui, Flávio!
      De fato, fazíamos isso como se estivéssemos brincando.
      Obrigado por prestigiar o blog.
      Forte abraço!

      1. Grande prazer!!
        E aproveitamos para estarmos em contato!
        Grande amigo desde o CPOR/73.

  7. Belo Artigo Zé Walker! Como sempre, possibilitando reviver as nossas lembranças .Já escalei a Serra do Curral, mas entrando pelo outro lado, atualmente, entrada do parque.
    Continue escrevendo!Parabéns mais uma vez!

    1. Obrigado Luiz Henrique.
      Serra do Curral é Serra do Curral. Não importa o ponto de partida.
      Forte abraço!

  8. Olá José Walker. Parabéns pelo texto. Muito gostoso de ler…me senti como se estivesse na caminhada. Talvez a menina rsrs. Abraço

    1. Prazer em te ver por aqui, Mônica.
      Que bom que você se sentiu “como se estivesse na caminhada”.
      Obrigado pelo retorno.
      Grande abraço!

  9. Zé, me lembro bem desta grande aventura, um grande desafio e ato de coragem, mas era muito gostoso e emocionante!!! Adorei o artigo.👏👏🌼💐

    1. Obrigado Glória.
      Eram aventuras mesmo, com direito a emoção e tudo mais. Mas não é disso que criança gosta?
      Abração!

  10. prezado José Walker, ja fiz tambem esta caminhada pela ferrobel, não havia barracos, ainda. Fomos mais longe até novalima, para comer no famoso, na época, restaurante cubanos ou algum nome semelhante. A caminhada foi com direito a sol, chuvas, trovoadas e belissimas vsitas. NEVER MORE AGAIN, mais tarde proibiram a passagem pela ferrobel.
    Good Times!

    1. Quando começamos a fazer essas caminhadas, por volta de 1967 ou 68, já não se podia passar pela Ferrobel.
      O jeito era passar pelo Morro mesmo.
      Pelo jeito, chuvas e trovoadas eram comuns lá no alto, hein?

  11. Meu amigo José Walker
    Suas lembranças são maravilhosas e desta vez ao ler suas histórias eu voltei no tempo e me lembrei da minha infancia e adolescencia no interior.
    Valeu amigo por me fazer viajar no tempo.
    Espero o próximo capitulo.
    Parabens

    1. Muito bom saber que você se lembrou da sua infância e adolescência no interior, Edson.
      Fico gratificado com isso.
      Obrigado pela sua companhia!

  12. Parabéns por mais um belo texto, Zé!
    Lendo suas aventuras pela cidade, lembrei-me de um texto de Rui Ribeiro Couto: “Todas as viagens são lindas, mesmo as que fizeres nas ruas do teu bairro. O encanto dependerá do estado da tua alma.” Abraços, Geraldo Mazzoni

    1. Obrigado Geraldo.
      Gostei da mensagem. Demonstra que estamos no caminho certo.
      Forte abraço!

  13. Walker: Belo texto! Conseguimos reviver boa parte da nossa gostosa infância. Parabéns de sempre.

    1. Valeu Alberto.
      Que bom que você reviveu a sua “gostosa infância” através do texto.
      Abs.

  14. José, aproveitei o lado oposto da Serra. Nascido, criado, casado e vivendo até hoje no Santo Antonio, explorei o lado do Córrego do Leitão, onde hoje é o Luxemburgo, Alto do São Bento. Como eram loteamentos novos, o asfalto das ruas também eram novos. Descíamos as ladeiras de carrinho de rolimã, que carregávamos desde onde hoje é a Araújo, na Prudente, atravessando pinguelas do Leitão. Boas lembranças. Abs

    1. Maravilha de depoimento Ricardo.
      Curtimos bastante aquela época, não é mesmo? As brincadeiras eram as mesmas, só mudavam de endereço. Você aí no Santo Antônio e eu na Serra.
      Saudades.

  15. Muito bom o artigo. Como te falei anteriormente, passei a infância / adolescência bem perto do Minas 1. Naquela época, o bairro da Serra para a gente era muito longe. Só vim a conhecer melhor o bairro depois da inauguração do Minas 2 e também da criação do Parque das Mangabeiras. Aliás eu frequentei muito as trilhas do Parque das Mangabeiras e aguardo a reabertura para poder retornar. Abraço.

    1. Obrigado Rubinho.
      Não importa a época. O importante é conhecer (e se apropriar) da Serra do Curral.
      Eu também quero voltar lá.
      Grande abraço!

  16. Que bacana! Fiquei imaginando as aventuras! Me lembrou dos meus tempos de escoteira!
    Parabéns! Adorei!!!
    Abraços

    1. Que bom que você gostou, Frieda.
      Não fui escoteiro, mas curti muitas aventuras.
      Grande abraço!

  17. Meu caro Walker, você desliza numa escrita que beira à perfeição.
    Por suas incríveis palavras voltei à serra do curral nos anos 70, onde junto com um amigo buscamos por uma bica de água na mata do jambeiro. A mata já não existia mais…..
    Seus escritos são simplesmente extraordinários.

    1. Obrigado pelos elogios, Ronaldo. É muita generosidade de sua parte.
      Mesmo com toda a devastação, ainda vale a pena subir a Serra do Curral.
      Forte abraço!

    1. Prazer em falar com você Luiz Maurício.
      Você era um dos pirralhos que mencionei no texto e sabe muito bem o que representaram essas caminhadas na nossa vida.
      Saudades daqueles tempos!

  18. Bela lembrança. Quando mudamos de Muriaé para BH em 1975, a família toda, eu com 12 anos, sempre olhava da janela de casa lá do Carlos Prates a Serra do Curral e perguntava prá mim o que tinha do outro lado.
    Foi quando o prof. liparini do Estadual Central, do 1. Ano onde estudei, convidou a turma para uma caminhada do Cemitério da Saudade até Nova Lima. Meu sonho foi realizado, e de lá para cá já fiz a travessia várias vezes.
    As histórias sempre se cruzam.
    Parabéns, José Walker, não deixe de continuar escrevendo, muitos se sentirão em casa, como eu.
    Abs. Magnus

    1. Beleza de depoimento, Magnus.
      Cada um, no devido tempo, acaba conhecendo e admirando a Serra do Curral. Alguns, como você, admiram tanto que voltam várias vezes.
      Continue sua trajetória de caminhante e se sinta em casa aqui no blog.
      Obrigado pelas palavras de incentivo.
      Grande abraço!

  19. Bons tempos de aventuras e memórias afetivas !
    Torço p q consigamos mostrar a importância da vida de fato “vivida Em sua Plenitude “ e não virtualmente “pelas telas “

    1. É isso mesmo Sofia.
      Para viver em plenitude é preciso deixar as “telas” de lado e partir para as aventuras. Como nos bons tempos!
      Abração!

            1. Tarzan, o Homem das Selvas.
              Prazer em falar com você depois de tantos anos.
              Fazendo acrobacias até hoje?

  20. Altas aventuras em Zé Walker?!
    Adoro conhecer as suas histórias.
    Parabens pelo artigo e pelo blog!!

    1. Sim Kado, altas aventuras.
      A ideia é essa mesmo. Através das minhas histórias, mostrar o que BH tem de melhor.
      Abração!

    1. Não. Naquela época nos limitávamos à região que corresponde hoje ao Parque das Mangabeiras.

  21. Também fiz várias caminhadas pela Serra e às vezes íamos até certo ponto e parecia que não tinha jeito de voltar.

    1. Bom te ver por aqui Maurício!
      De fato, a Serra do Curral é cheia de meandros. É preciso muita atenção para não se perder lá em cima. Sob ameaça de chuva então, nem se fala.
      Abração!

      1. Belas lembranças. Não tive esta oportunidade quando criança.
        Mas , já se fazem uns dez anos, junto com membros do grupo Caia na Real, tínhamos o hábito de sair do Gutierrez e ir a pé até a crista da Serra do Curral, onde tínhamos a vista do ” Belo Horizonte” como também dos ” buracos ” deixados pelas mineradoras, do lado de Nova Lima.
        Posso dizer que é uma bela caminhada.
        Abraço

        1. Você tem razão, Betinho. É uma bela caminhada.
          Como criança ou adulto, o importante é conhecer e se apropriar da Serra do Curral. Apesar dos pesares, vale a pena.
          Grande abraço!

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