Um circuito quase perfeito

Pra descer todo santo ajuda: começo na Savassi e termino no Parque Municipal. Foi o que pensei quando me propus fazer a pé o Circuito Literário de Belo Horizonte*. Era sábado. Manhã de sábado. Desci do 8102 na última parada da avenida Cristóvão Colombo, segui até a rua Fernandes Tourinho e dali até o quarteirão fechado da rua Pernambuco, onde iniciei a minha jornada. Em frente ao prédio onde morou, livro aberto entre as mãos, a poetisa Henriqueta Lisboa parece refletir sobre algo transcendental, a própria poesia talvez. Primeira mulher a ocupar um assento na Academia Mineira de Letras, Henriqueta apresenta-se de óculos, saia na altura dos joelhos, blusa de manga comprida sem decote e salto alto: acadêmica. Logo abaixo, no quarteirão fechado da rua Antônio de Albuquerque, um dos expoentes da chamada literatura pop: Roberto Drummond. De tênis, calça com as barras dobradas e camisa de mangas compridas arregaçadas até quase os cotovelos, o autor de Hilda Furacão passeia pelo território que nos anos 70-80 era a extensão de sua casa, a Praça da Savassi. Savassi. De lá até a Praça da Liberdade é um pulo, todo mundo sabe. E foi. Desci a avenida Cristóvão Colombo, passei em frente ao Palácio e num instante cheguei à Biblioteca Pública, onde se encontram os velhos amigos Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pelegrino e Paulo Mendes Campos. Absortos, os quatro amigos sequer percebem a aproximação do confrade Murilo Rubião, que vem caminhando pelo jardim defronte e traz consigo o Suplemento Literário do Minas Gerais. Conseguirá o recém-chegado, com o prestigioso folhetim, despertar a curiosidade dos amigos? Não sei. O que sei é que já estava atrasado para o encontro seguinte e tive que apertar o passo. Desci a avenida João Pinheiro, passei pela Praça Afonso Arinos e cheguei à esquina das ruas Goiás e Bahia, onde me aguardavam o poeta Carlos Drummond de Andrade e o memorialista Pedro Nava. Drummond, semblante carregado, pensa talvez em pedras no meio do caminho. Nava, mais descontraído: vê, Carlos, ali adiante a rua da Bahia? Acaso te lembras dos anos 1920, quando costumávamos virar as noites puxando angústia no Bar do Ponto ou no Trianon? Imaginação minha, é claro. Só agora, observando a foto, é que me vieram à mente o poema do Drummond e as aventuras da dupla na velha rua da Bahia. Naquele sábado, eu mal tive tempo de conversar com os dois grandes escritores. O meu pensamento estava voltado para as mais recentes integrantes do Circuito, as escritoras Carolina Maria de Jesus e Lélia de Almeida Gonzalez. Encontrei-as em frente ao Teatro Francisco Nunes, no Parque Municipal. Carolina, de vestido longo e turbante à cabeça, parece se preparar para a leitura de um dos trechos do livro que tem às mãos. Lélia, mais a vontade, quase esboça um sorriso. Três mulheres, nove homens, um circuito literário. Eu disse nove homens, mas se você se deu ao trabalho de contar e verificou que são oito, saiba que o erro é proposital. Não me conformo com a ausência do João, aquele que revelou ao mundo o sertão das gerais e a cada um de nós a verdadeira alma do sertanejo. Mas ainda está em tempo. Basta que encomendem uma escultura em sua homenagem e a coloquem na esquina das ruas Congonhas e Leopoldina no Santo Antônio. E junto da escultura uma placa com os dizeres aqui morou o grande escritor João Guimarães Rosa. Aí sim, teremos um circuito perfeito. – : – : – : – * O Circuito Literário de Belo Horizonte, uma iniciativa da Prefeitura, tem por objetivo divulgar os locais onde se encontram as esculturas de importantes escritores mineiros, todas elas assinadas pelo artista Leo Santana. Foto de abertura: casa onde morou o escritor João Guimarães Rosa no bairro Santo Antônio em Belo Horizonte.