Sob as bênçãos de São Gonçalo

Após um jejum de cento e oitenta e poucos dias por conta da pandemia, finalmente voltei às minhas caminhadas de rua. O local escolhido não foi a Praça da Liberdade, o Parque Municipal, a Andradas ou a José Cândido. A bem da verdade, não foi nenhum parque, praça ou rua de Belo Horizonte. O local escolhido foi São Gonçalo do Rio das Pedras, terra natal do meu pai. Encravado na Serra do Espinhaço, Alto Jequitinhonha, o vilarejo data do século XVIII e faz parte da Estrada Real. Fica entre Diamantina e Serro. Chegamos, eu e Lude, às duas da tarde de um domingo quente e seco. Fomos direto para a casa da família no Largo Félix Antônio, um dos cartões postais de São Gonçalo. Abrimos as janelas e ficamos um bom tempo admirando a paisagem.    Largo Felix Antônio em São Gonçalo do Rio das Pedras Por fim, o calor e o cansaço da viagem nos venceram. Naquele momento, uma boa cama era tudo o que queríamos. Acordamos às cinco da tarde. Sentamo-nos num tosco banco – galho de árvore apoiado em tocos de madeira – instalado ali mesmo, no Largo Félix Antônio, e nos pusemos a contemplar, lá no alto, a Igreja Matriz. Majestosa em sua simplicidade, a igreja encontra-se bem conservada. Concluída, provavelmente, em meados do século XVIII – a pintura da capela-mor o foi em 1787 – e tombada em 1980, é uma atração à parte. Ao lado e um pouco abaixo, a casa onde meu pai nasceu. Dizem que meu avô ali se estabeleceu para melhor se desincumbir das lides de sacristão, e não satisfeito mandou fazer um portão no muro lateral, modo de encurtar ainda mais o trajeto até a igreja. Fiquei imaginando a infância saudável que meu pai viveu naquele paraíso e acabei me lembrando do motivo da nossa viagem. Já era tempo de iniciarmos a caminhada. Seguimos em direção à parte baixa. A descida exige destreza e atenção. O calçamento das ruas em pedras grandes e irregulares – dizem que da época dos escravos – não ajuda. Qualquer descuido é tiro e queda. Literalmente.     Mas vale a pena. Lá embaixo, a ponte sobre o Rio das Pedras é parada obrigatória. Ver correr o rio de águas cristalinas bem no meio do vilarejo é algo indescritível. Depois da ponte, dois caminhos. Um sem saída, o outro sem fim. O primeiro conduz ao topo da Cachoeira do Comércio, uma das várias cachoeiras de São Gonçalo. O segundo a Milho Verde, Serro e aos confins de Minas. Optamos pelo primeiro. Chegamos ao topo da cachoeira em boa hora. Por do sol visto do topo da Cachoeira do Comércio Para o dia da chegada já estava de bom tamanho. Entretanto, era festa de Nossa Senhora do Rosário. Terminado o ofício religioso, saiu a procissão. Em tempos de pandemia, motorizada. Os 17 carros de São Gonçalo acompanharam. Passou a procissão, seguimos adiante. Caminho do Serro, Estrada Real. A sede de caminhar era tanta que teríamos chegado a Milho Verde, logo adiante, não fosse o cair da noite.   Nos cinco dias restantes, a vida que pedimos a Deus. Café da manhã a partir das nove horas, boa música e bons livros até a hora da cervejinha, almoço por encomenda, cochilo da tarde e caminhada vespertina. Às vezes aparecia na varanda um visitante ilustre.  Voltei ontem às minhas caminhadas de rua em Belo Horizonte. Não sei de onde me veio a inspiração…