A Pampulha que só enxerguei agora, após o reconhecimento internacional
Outro dia fui caminhar de terno e gravata. Sabem onde? Às margens da Lagoa da Pampulha. Terno e gravata é força de expressão, mas bem que o momento era propício: o Conjunto Moderno da Pampulha acabava de ser reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Patrimônio Cultural da Humanidade! Isso quer dizer que a partir de agora a Igrejinha de São Francisco de Assis, o antigo Cassino, a Casa do Baile, o espelho d’água e seu entorno já não pertencem somente a mim ou a você que costuma frequentar o local. Foto: Carlos Avelin Como as pirâmides do Egito, a muralha da China e o Taj Mahal, só para citar alguns exemplos, esse belo conjunto arquitetônico agora pertence a toda a humanidade, e mais, faz parte de seu patrimônio cultural. Portanto, naquele dia eu tinha motivos de sobra para comemorar e resolvi fazer a minha caminhada em grande estilo, começando onde tudo começou: no antigo Cassino, hoje Museu de Arte da Pampulha. Enquanto fazia meu alongamento, fiquei imaginando o impacto daquela novidade sobre as pessoas que, no início da década de 40, ali chegavam para fazer suas apostas. Fiquei imaginando também a surpresa dessas pessoas ao saberem que a ideia partiu de dois ilustres desconhecidos: Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte e Oscar Niemeyer, que iniciava sua carreira de arquiteto. De fato, o projeto era bastante arrojado para a época, diferente de tudo o que se vira até então, e Niemeyer foi muito feliz ao lançar o prédio sobre uma elevação do terreno, debruçado sobre o espelho d’água. No interior o arquiteto também acertou em cheio: mármores brancos, colunas revestidas em aço inox, corrimãos dourados, muito vidro e superfícies espelhadas, tudo projetado em função do público frequentador, que podia se exibir à vontade. Do lado de fora, diversas espécies da flora brasileira agrupadas em volta de um pequeno lago artificial. São os jardins do paisagista Roberto Burle Marx e do botânico Henrique Lahmeyer de Mello Barreto. E em meio aos jardins, três esculturas emblemáticas: o Nu de August Zamoyski, a Figura Alada de José Pedrosa e o Abraço de Duas Mulheres de Alfredo Ceschiatti. Mas Juscelino não apostava somente no jogo e nas obras de arte. Além do Cassino, sonhava com um salão de danças, um clube, uma igreja e um hotel, que não chegou a ser construído. E foi exatamente para o salão de danças, mais conhecido como Casa do Baile, que fui caminhando após terminar o meu alongamento. É aí que Niemeyer se solta. O resultado é um projeto singular, onde o volume redondo que constitui o corpo do prédio vai aos poucos se metamorfoseando em marquise, que prossegue, sinuosa, até os jardins, também assinados pela dupla Burle Marx-Henrique Lahmeyer. Eu poderia ficar horas admirando aquela obra síntese da arquitetura de Niemeyer, mas estava ansioso para continuar a minha caminhada. Ainda faltavam o Iate Tênis Clube e a Igrejinha de São Francisco de Assis. Num instante cheguei ao Iate Tênis Clube. Infelizmente, só consegui ver a fachada do prédio desenhado por Niemeyer, assim mesmo olhando através de um dos quadradinhos do muro de tijolos vazados que fica rente à calçada. Mas o pior ainda estava por vir, ou por ver. Quadras, muitas quadras esportivas, e um grande caixote de concreto construído sobre um aterro que invadiu boa parte da lagoa. Dizem que vão demolir tudo isso e resgatar o projeto original. É o que todo o mundo espera, inclusive o pessoal da Unesco, que já estabeleceu até um prazo para que isto aconteça. Sob pena de perdermos o título recém conquistado! Deixei, pois, aquela aberração para trás e segui adiante. Felizmente a Igrejinha de São Francisco de Assis já despontava do outro lado e logo recuperei o entusiasmo com que havia iniciado a caminhada. Assim que cheguei, a emoção bateu mais forte. Embora eu já tivesse visitado aquele ícone da arquitetura moderna em diversas ocasiões, era a primeira vez que o via como verdadeiro patrimônio, como obra de arte em si mesma. Naquele momento eu enxerguei a obra de Niemeyer como a imaginou o próprio arquiteto, cobertura e paredes formando um único elemento estrutural em forma de abóbada (uma alusão à abóbada celeste?), verdadeira escultura em cimento e aço. Enxerguei também as 14 telas que compõem a Via Sacra da Igrejinha e entendi porque são consideradas uma das obras mais importantes de Portinari. Ali, na força dramática da paixão de Cristo, estão evidentes a sensibilidade, o potencial criativo, a genialidade do artista. Só faltava a obra de Ceschiatti e fui até o batistério para conferir. São 4 painéis em baixo relevo em que o escultor belo-horizontino retrata, com a expressividade que lhe é peculiar, o paraíso terrestre desde a criação até a expulsão do homem. Mas já estava na hora de voltar pra casa e ao sair da Igrejinha lancei um último olhar sobre a Pampulha. O céu estava soberbo de azul e uma única nuvem se via no horizonte. Tive a impressão de que lá do alto alguém velava por tudo aquilo. Seria o menino Juscelino? Foto de abertura: Maria Lúcia Dornas – Jesus cai pela 2ª vez